Com um sorriso farto e os olhos brilhando, um garoto segura uma velha câmera fotográfica, diverte-se fingindo registrar os jornalistas recém-desembarcados na Praça Champ de Mars. Não há filme na máquina, mas isso não parece preocupá-lo. O terremoto o fez aprender desde cedo que bastam alguns segundos para ceifar milhares de vidas e arrasar todos os bens que a família possuía. As fotos serão reveladas e guardadas na memória, único lugar inatingível pela fúria do instável subsolo haitiano.
A praça fica em frente ao Palácio Nacional, destruído pelo terremoto, ocorrido em 12 de janeiro. O número de mortos pode chegar a 300 mil. Símbolo da tragédia, tornou-se um campo com 50 mil desabrigados que vivem em barracas, umas de material impermeável outras feitas apenas com pedaços de tecido. Falta tudo: banheiros, cozinha, comida, água, energia, numa lista infindável de gêneros de primeira necessidade. As pessoas tomam banho entre as barracas, ou no meio da rua. A comida, quando há, é preparada em qualquer canto.
O cenário é de caos e horror, terreno fértil para o choro, para a dor, trágico suficiente para deprimir e desesperançar os sobreviventes do cismo. Mas a realidade surpreende, os sorrisos, as brincadeiras e a vaidade vão brotando entre os mosaicos multicoloridos de barracas e tecidos. Num canto, a mãe adorna o cabelo da filha mais nova com dezenas de enfeites coloridos, as poucas roupas que sobraram estão bem cuidadas e limpas. Dentro de outra barraca, um senhor ajusta com zelo o nó da gravata, mulheres improvisam um salão de beleza, cabelo, maquiagem e unhas são cuidadosamente tratados.
As crianças são o maior exemplo de superação. Qualquer pedaço de plástico e alguns gravetos se transformam numa pipa. Outros correm por entre as barracas, improvisam carrinhos, bonecas e aviões. Brincam e sorriem, reconstróem os ciclos de amizade, aprendem a viver sem os pais, sem os avós, tios, primos e amigos que morreram no cismo. Não vi uma única criança chorando, nem entre as que estavam no hospital com braços e pernas quebradas.
Nas ruas o trânsito absurdo e o comércio informal anunciam que tudo começa a voltar ao ritmo pré terremoto. A urgência da vida é estimulada pela intolerância do clima. Falta menos de um mês para o início do período de chuvas, cada núcleo familiar corre atrás de se abrigar melhor, sabem que as lonas impermeáveis resistem a água mas não suportam os ventos da temporadas de furacões que começam em julho. Todos sabem que ficar parado num letárgico estado de luto só agravará a situação. Viver para o haitiano é conseguir driblar as catástrofes e conflitos que permeiam sua história.
texto e fotos de sergio ranalli.
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