próxima parada

cabeça

cabeça alimenta-se de sossego, páginas cheias de palavras, uma música que toque muito baixinho, um bom apoio para as costas. é disto, apenas disto, que eu te tenho estado a falar.

as coisas

a bengala, as moedas, o chaveiro,
a dócil fechadura, as tardias
notas que não lerão os poucos dias
que me restam, os naipes e o tabuleiro.
um livro e em suas páginas a seca
violeta, monumento de uma tarde
sem dúvida inesquecível e já esquecida,
o rubro espelho ocidental em que arde
uma ilusória aurora. quantas coisas,
limas, umbrais, atlas, taças, cravos,
nos servem como tácitos escravos,
cegas e estranhamente sigilosas!
durarão para além de nosso esquecimento;
nunca saberão que nos fomos num momento.
"eu volto pra curtir!"

tudo

ele canta baixinho debaixo do lençol, não quer que o sol venha, não quer que a noite acabe. ele canta baixinho debaixo do lençol, não quer ter que falar, não quer ter que dizer. ele canta baixinho, ele canta baixinho, e o sol vem, e a noite acaba. ele canta baixinho, ele canta baixinho, e mesmo querendo, acabou por dizer, acabou por dizer. tudo.

estamos sob o mesmo teto

estamos sob o mesmo teto
secreto
onde o sol indesejável é barrado
eu e você
sob o mesmo nós
dois, sóis
sob o mesmo pôr
(o enigma do amor)
do sol
onde todo contorno finda
estamos
sob a mesma pálpebra
agora
já e ainda
intactos de aurora.

sou

queria ser capaz de dizer as coisas de uma forma directa, mas a língua sempre me foge para a literatura. assim engulo, mastigo, mas não rebento. o meu peito é sementeira em crescimento. e lá dentro, o coração segue, irregular, às vezes rápido, outras lento. queria ser capaz. e sou

paris, texas - wim wenders

ele se fazia de outros
tentava ser outros
ensaiava outros
ora grandiosos
ora frágeis
mas sempre era o princípio
o principal
um dia se cansou, foi pra uma outra cidade
era pequena
voltou pra que era pequena
ele era de uma dessas pequenas
tentou se ser singular
a pediu em casamento
teve filhos
cuidou da fazenda
da pequena
mas continuava ensaiando em seus cantos
pensamentos, as vezes pra ela que o ouvia sem querer se interar por completo do que tratava
ela talvez não quisesse se interar
era de outras formalidades
pra ela existiam paredes
ele contava pros filhos seus atos
preenchia seus atos com todo o seu corpo
eles viam
imagem
a imagem do que pode ser grande numa figura que eles conheram na pequena
parecia tudo uma deliciosa invenção
um corpo presente fabuloso
a imaginação
ele se cansou
deixou a pequena, ela, os filhos
voltou
começou de novo
foi feliz
se cansou
voltou pra pequena
o aceitaram
cansou de novo
voltou
se sentiu pequeno
o corpo já não era tão vigoroso
o pensamento continuava grande
um dia ele sonhou
respirou, seu coração pediu por auxílio mais do que ele podia
e se foi no acalento do sono e da noite.
renata cabral
"hoje pavão, amanhã espanador..."
v
e
r
t
i
c
a
l
i
z
a
r
-
m
e
?

" obrigado, destino, por estas pequenas felicidades"
teodoru badiu

domingo

o domingo é um dia assim. acorda-se com o sabor da noite. voltamos à cama mesmo sabendo que está sol. rebolamos pelo colchão, adormecemos, perdemos noção das horas. depois saímos, vamos ao mercado, olhamos o mar, tomamos um café. limpamos as poucas coisas que existem para limpar, na casa. e no fim da tarefa, com um leve alívio contente pelo esforço físico dispendido, bebe-se água e a cabeça volta a funcionar. a escrever. o domingo é um dia assim.

vocês não ouvem os assustadores gritos ao nosso redor que habitualmente chamamos de silêncio?

prólogo do filme "o enigma de kaspar hauser" de herzog, 1974

the jacksons family
"esperavam muitíssimo, estavam ansiosos por mudar. agora passaram quatro anos e estão muito tristes. não gostam de viver ali porque estão separados. já não é possível a vida da rua, não é possível fazer nada do que faziam, como por exemplo os churrascos, a carne assada... a polícia não deixa, há leis européias que impedem esse tipo de coisas. perderam todo o dinheiro que tinham a comprar móveis e televisores, para reproduzir os modelos das casas das pessoas endinheiradas que limpam.
é tudo um pouco violento, mas não falo de uma violência física, é uma violência de outro gênero. antes não era assim, eram pobres, miseráveis, sem condições mínimas para viver... mas tinham o bairro. o bairro é uma atitude. as pessoas do bairro não gostam de mudar nem de sair, cria-se uma espécie de gueto que se vai ampliando."

excerto de uma entrevista com pedro costa - cineasta,
falando sobre seu "filme juventude em marcha
"
como se pedir cuidado?
palavras que saíram voando, de voláteis pesaram um pouco
como entender o que não há, ou o que não houve
o elefante voltou para a estrada e abanou a poeira como se fosse um mosquito
a nuvem de areia assentou e assistiu a tromba dançar
os grãos ficaram, o animal se foi
continuou a estrada
talvez inconsciente da marca deixada no chão

mutare, leste do zimbabué - nov. 2006 - fotógrafo jakezdaniel

"ainda que alguns defeitos sejam os pilares sobre os quais forjamos nossas qualidades."

fotógrafo tim walker para hermes .

mudança

depois que a porta se abriu
perdemos o controle do vento
ele tomou conta da casa
balançou as cortinas e partiu
não queremos mais fechar a porta
existem coisas que chegam na hora certa.

porta

"só podemos lutar contra o que conhecemos. por isso inventamos lutas contra os nossos vizinhos, os nossos irmãos, os nossos concorrentes directos. nunca ninguém ouviu dizer: estou em conflito com os de longe, que de maneira nenhuma podem chegar à minha porta. eu sei, tu julgas ter ouvido isso, em algum lado, alguma vez. mas não, tantas vezes a nossa porta está tão mais distante que a fronteira da casa."

minha alegria

"minha alegria permanece eternidades soterrada
e só sobe para a superfície
através dos tubos alquímicos
e não da causalidade natural.
ela é filha bastarda do desvio e da desgraça,
minha alegria:
um diamante gerado pela combustão,
como rescaldo final de um incêndio."
waly salomão

raposa do sol

"lá de longe em longe o dia amanhece diferente. que o digam os índios da reserva indígena da raposa do sol no estado de roraima, ao norte do brasil, a quem o supremo tribunal federal acaba de reconhecer e confirmar definitivamente o seu direito à plena posse e ao uso pleno dos mil quilómetros quadrados de superfície da reserva. a sentença não deixa qualquer margem a dúvidas: os não índios devem sair imediatamente da raposa do sol, assim como as empresas arrozeiras que durante anos invadiram o território e nele se instalaram abusivamente. já em 2005 o presidente lula havia decidido a entrega da reserva aos indígenas e a saída das empresas arrozeiras, mas as autoridades do estado de roraima, favoráveis aos arrozeiros, recorreram ao supremo tribunal por considerarem inconstitucional o decreto presidencial. quatro anos depois o supremo decide a questão e põe uma definitiva pedra sobre o assunto. nem tudo, porém, são rosas neste idílico quadro. afinal, a luta de classes, tão discutida em épocas relativamente recentes e que parecia haver sido condenada ao caixote do lixo da história, existe mesmo. com esta visão unilateral que temos, nós, os europeus, dos problemas sociais da américa latino, tendemos a ver unanimidades onde elas não existem nem existiram nunca. na raposa do sol, os índios endinheirados, que também lá os há, fizeram causa comum com os não índios e com as empresas arrozeiras. a festa foi dos outros, dos pobres.

cá para baixo, na cidade maravilhosa, a do samba e do carnaval, a situação não está melhor. a ideia, agora, é rodear as favelas com um muro de cimento armado de três metros de altura. tivemos o muro de berlim, temos os muros da palestina, agora os do rio. entretanto, o crime organizado campeia por toda a parte, as cumplicidades verticais e horizontais penetram nos aparelhos de estado e na sociedade em geral. a corrupção parece imbatível. que fazer?"

hoje faleceu helen levitt.
"olha ali sou eu
pendurado
no fio desencapado
do poste de alta tensão

a liberdade serve a morte
assim o destino a sorte"

site fino que o marcelinho me apresentou - http://ffffound.com/

ontem fez uma semana que furtaram meu carro

talvez por isso quis reler, agora, este texto do michel melamed. ou não.

nação
apertou
apartou
achava que era qualquer coisa
pensou que era o máximo
danou-se numa esquina
caiu de uma pinguela
sem pensar emitiu palavras vesgas
sem ouvir deduziu vitória
sem parar o cérebro fechou
ziguezagueou numa construção verbal
sem foco, bobeou
danados achando panos quentes
fissuras com remendos de trident
o fel que não escorre a alma colhe
danados sem notícias das montanhas
domingo atolado em arrobas
o tímpano que rolhou-se
a língua desfiou-se
apartou o bom fazer
apertou o calo de sangue
isolou o ouvido
vive só bang-bang

vomito palavras cegas
meu ouvido não ousa aceitar
ouço os passos de uma cadeira sem merecimento

"inhapo"
vô ilídio dizia
eu digo:
"é mole?"

não aperto
não aparto
sente-se
fique à vontade


em dezembro de 2006

casa vazia

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